Do Brasil para a Gringa: as vísceras de uma autenticidade patriota

Falar sobre luxo é criar um diálogo que vai além da qualidade das matérias-primas, mãos-de-obra e técnicas utilizadas em cada marca, mas também ressaltar a importância da originalidade do design, que só é possível quando olhamos para dentro.

Assim como qualquer processo, o criativo nāo é diferente, partindo de priorizações e referências, as nossas escolhas, seja no criar ou no vestir, sāo de forma inconsciente - ou nāo - direcionadas pela forma como enxergamos e o que valorizamos em nós e ao nosso redor. Tenda Tripa foi o espaço criado por Airon Martin, em sua nova coleçāo da Misci, que nos convida a olhar para as partes mais profundas de quem somos: brasileiros. 

FOTO: MARIA LUIZA PINHEIRO

A Misci busca ampliar a definição do design nacional e afirmar formas próprias de produzir e lançar moda, fugindo dos estereótipos contemporâneos e, ao se referir às vísceras do corpo humano no desfile que parou o país para lançar sua nova coleçāo, a marca que é considerada uma das grandes apostas do luxo brasileiro, trouxe à tona nessa narrativa a nossa parte mais sensível como indivíduos.

Com o poder de influenciar as percepções do cérebro e, assim, como alguém enxerga seu entorno, a palavra entranha também significa índole, aquilo que é intrínseco à algo, abraçando todos os sentidos da importância central dos elementos que formam múltiplas experiências de mundo.

Nas tripas do Brasil, o estilista encontrou nāo só o fio condutor de sua nova coleçāo para a Misci, mas também o segredo para o que torna o design de um produto de luxo autêntico.  

FOTO: MARIA LUIZA PINHEIRO


A identidade inventiva de uma marca só existe quando cada uma delas olha para as suas origens territoriais, históricas e intencionais. Trazer o Brasil para o centro da Misci é uma forma de reforçar nāo apenas quem somos como indivíduos, mas também redescobrirmos o que foi por muito tempo silenciado - e ainda é em um contexto de comportamento eurocêntrico. 

Mais do que a apresentaçāo de uma coleçāo, o desfile da marca foi um apelo para sermos patriotas, livres de estereótipos, nāo somente com o nosso consumo material, mas também simbólico. 

Além de originalidade, é impossível falarmos sobre referências brasileiras que sāo muito mais do que matérias-primas, mas também símbolos vivos do nosso país. Junto à aplicação de tais insumos na sua cadeia produtiva, Airon traz também uma preocupação com o uso de diferentes inovações e fontes de materiais para a Misci. 

FOTO: MARIA LUIZA PINHEIRO


A Gringa valoriza o luxo mundial independente de suas localidades, mas por ser uma empresa brasileira, busca cada vez mais fomentar o mercado nacional. O alinhamento com marcas que possuem propósitos, processos e produtos se transforma em conhecimento, comunicaçāo e projetos, em vários desdobramentos diferentes. 

Conferimos de perto o desfile da Misci na manhã dessa terça-feira, 22 de abril, e em uma entrevista exclusiva, entendemos um pouco melhor a visāo do estilista, Airon Martin, para a sua marca e o mercado de luxo no Brasil: 

Na sua opiniāo, o que diferencia o Brasil no mercado de luxo ao olharmos para fora? 
"A resposta está justamente quando fazemos o contrário e olhamos para dentro. O mundo quer ouvir o que o Brasil tem a dizer e quanto mais regional formos no sentido criativo, mais global seremos. A criaçāo é o que temos de melhor e se usarmos todos os códigos necessários dessa etapa como as matérias-primas, modelagens e acabamentos combinados às embalagens, operacionalizações e logísticas, entregaremos um produto global. É isso o que um gringo quando vem ao Brasil quer ver."

A Misci é uma marca que se posiciona fortemente como sustentável. Para você, qual a importância das inovações dessa área para o futuro do marcado nacional ao levarmos a moda do Brasil para a gringa?
"Nāo conseguimos falar de um produto global sem inserirmos inovações sustentáveis. A importância é 100% porque sinto que nessa indústria, esse é o futuro, principalmente dentro de uma perspectiva têxtil. Precisamos olhar para novas fontes de matérias-primas e fazer o que está ao alcance da realidade de cada marca, tanto operacional quanto econômica.

A reutilizaçāo de tecidos, por exemplo, já faz parte dos nossos processos, mas nessa coleçāo em específico, utilizamos em alguns produtos uma matéria-prima que serve como alternativa ao couroà base de um composto químico sem metais pesados e 25% de látex que é extraído por cooperativas parceiras de seringueiros da Amazônia e do Centro-Oeste. Um exemplo disso é o design com base na transformação de retalhos de jeans em novos tecidos após a injeção de látex transparente, resultando em um mosaico de diferentes texturas."

FOTO: MARIA LUIZA PINHEIRO

Os cuidados também abraçam as peças de couro da marca, que sāo nacionais e 100% rastreáveis, com iniciativas diversas: a linha, chamada  beLEAF, é obtida através do curtimento das folhas da planta orelha-de-elefante enquanto o uso da fibra de buriti, feito por uma comunidade de artesãs do Maranhão, também faz parte de um trabalho inspirador de uma māo-de-obra artesanal. 

Sem contar os tecidos de algodão naturalmente coloridos e a seda nacional – incluindo o jeans de seda produzido no interior do país.

FOTO: MARIA LUIZA PINHEIRO

Outra característica de uma marca sustentável que a Misci aborda em diversas coleções é a co-criaçāo através de colaborações e, dessa vez, nāo foi diferente. Além de sete modelos da nova coleçāo terem sido desenvolvidos em parceria com a marca Lenny Niemeyer, todos os sapatos usados no desfile de Tenda Tripa foram desenvolvidos juntamente com a marca Botti que, assim como a Misci, incorpora nos materiais o biocouro de folha de orelha-de-elefante e o de pele de pirarucu. 

FOTO: INSTAGRAM
FOTO: MARIA LUIZA PINHEIRO

O desfile contou com diversos nomes de influência nesse mercado e, entre eles, Camila Coutinho, que além de ter um relacionamento duradouro com a Misci, é a primeira influenciadora brasileira a assinar o Pacto Global da ONU e uma voz que comunica cada vez mais a importância da responsabilidade social através da moda e dos negócios.

Também em uma entrevista exclusiva para a Gringa, Camila nos contou um pouco mais sobre esse perfil de marca e criação dentro da indústria da moda: 

O Brasil carrega uma singularidade latente, mas na sua opinião, o que mais nos diferencia no mercado de luxo quando olhamos para fora? 
"As diferenças são inúmeras e inclusive, pouco exploradas, mas para mim o nosso grande destaque é a nossa mão-de-obra. O handmade é muito mais do que uma macrotendência, para mim, é um dos pilares do luxo, porque além de ser uma das maiores formas de materializar  cuidado e qualidade, é também uma das melhores formas de tornar um produto único."

A indústria brasileira apesar de já possuir um destaque fora do nosso país, pode avançar ainda mais. Na sua opinião, qual a importância de marcas como a Misci para o futuro da moda do Brasil para a gringa? 
"O que as marcas apresentam é o que torna possível representarmos o nosso país através da nossa originalidade. Essa insistência do Airon, por exemplo, em reforçar os símbolos nacionais é muito importante."

Com designs autênticos, matérias-primas de procedência e qualidade e processos sustentáveis nos parâmetros sociais e ambientais, o produto de luxo brasileiro nāo fica atrás dos demais países. O que precisa de uma evoluçāo nāo sāo os nossos produtos, mas sim a forma como criamos, consumimos e enxergamos a moda brasileira. 


24/04/2024 SUSTENTABILIDADE | RENATA FERNANDES