Descarbonização da Moda através do Second Hand

Na contramão do ditado popular, os produtos não precisam ir do lixo ao luxo, muito pelo contrário: os artigos têxteis, quando descartados, emitem um alto volume de gás carbônico que poderia ser evitado a partir do momento em que a extensão do ciclo de vida passasse a ser uma prática da cadeia produtiva na moda, um fator que incentiva não só os pilares da economia circular e da sustentabilidade, mas também serve de solução para os impactos ambientais causados por essa indústria. 


De acordo com o Fórum Econômico Mundial, o setor têxtil produz, aproximadamente, 2,1 bilhões de toneladas de emissões de gases de efeito estufa (GEE) em um único ano, o equivalente a 4% de todas as emissões globais. Esse número é tão urgente quanto os nossos esforços como marcas e consumidores deveriam ser, e não é por acaso que o mercado de segunda mão surge como solução para a produção e consumo desenfreados até o descarte indevido.

FOTO: ONG FUNVERDE

A descarbonização é uma das principais alternativas para solucionar esse excesso de emissões, visando a redução e a compensação através de diferentes caminhos que podem ser percorridos, como o reúso e o beneficiamento das peças, prática muito comum no mercado de segunda mão, indústria protagonista na extensão do ciclo de vida dos produtos.

A reinvenção da indústria do mercado de luxo através do second hand se dá a essa urgência de consciência de um público com um poder de informação e compra que combinam as escolhas de um estilo de vida mais sustentável à uma oportunidade de compra e venda pautada nas vantagens desse negócio.

Os grandes players do mercado de segunda mão estão crescendo 20 vezes mais rápido do que o imbatível varejo e por si só já atingem uma média de redução de 30% de emissões de carbono quando comparados às redes de fast fashion, segundo Mario Ortelli, consultor do setor de luxo, à Época Negócios.

Empresas pioneiras, como a americana The RealReal, são exemplos de como o mercado está mudando não somente para os consumidores, mas também para as marcas que fazem história no luxo. Para Julie Wainwright, fundadora da TRR, os principais estilistas também estão começando a entender os benefícios dessa prática, onde as empresas começaram a perceber que os sites de revenda estão ajudando a ampliar o alcance e a cobiça por suas marcas.

Além de um novo desejo de consumo gerado pelas empresas do second hand por meio dos itens esgotados nas lojas próprias das marcas e raridades vintages, o mercado de segunda mão também se destaca por iniciativas que vão além da compra e venda de artigos usados, como a reciclagem de resíduos têxteis descartados em suas operações e compensação de carbono através do plantio de árvores, práticas da Gringa que também podem ser ações individuais adaptadas à cada realidade.

Desde o nosso primeiro dia de funcionamento, nós já compensamos 99,5 toneladas de CO2 e só no último mês, reciclamos aproximadamente 600 artigos têxteis, dentre eles, bolsas não autênticas. 

FOTO: GRINGA

Hoje o uso da roupa de segunda mão tornou-se um fenômeno altamente comum dentro do sistema global de produção, venda e consumo, mas algumas empresas do second hand vão além, investindo em inovações de curadoria para ampliar ainda mais a vida útil dos produtos através das restaurações e beneficiamentos em cada um deles. 


As práticas curatoriais restaurativas e preventivas são uma das principais ações propostas pela descarbonização e têm sido super valorizadas pelos consumidores do mercado de segunda mão, tornando-se um diferencial na motivação de compra, não só por ressignificarem os produtos usados, mas também por oferecerem uma experiência que nem a compra direta nas marcas é capaz de oferecer.

FOTO: GRINGA

Existem também outros caminhos para a descarbonização da moda, além da compra e venda de itens usados e restaurações das peças, que podem reduzir as emissões de marcas e consumidores, desde a produção e consumo até o descarte delas, que consistem em: 

  • uso de embalagens provenientes de materiais reciclados ou biodegradáveis e com selos de logísticas reversas, como o Eu Reciclo
  • monitoramento de CO2 emitido com o auxílio de calculadoras que nos ajudam a entender o consumo diário através do site da Idesam ou, mais especificamente, dos itens dos nossos guarda-roupas, através do site da ThredUP
  • compensação de gás carbônico, através do plantio de árvores
  • aumento da prática de reciclagem e coleta seletiva
  • minimização do uso energético cotidiano ou em logísticas e operações e substituição para energia renovável

Mas essa nova visão de mundo só é possível graças às marcas que usam a transparência como ponte para um consumo mais sustentável, comunicando com cada vez mais clareza os processos que tornam as operações mais responsáveis e reduzem os impactos ambientais causados por uma indústria que assume papéis tão importantes e tão destrutivos ao mesmo tempo.

E nesse diálogo sobre a crescente e a importância do second hand no futuro - e presente - da moda, convidamos André Carvalhal, jornalista e publicitário pós-graduado em marketing e especialista em design para sustentabilidade, para uma reflexão sobre os três principais temas que ele domina, após assumir por quase uma década a cadeira de gerente de marketing da Farm e também como professor de branding da FGV e ESPM, um dos pioneiros a criar uma plataforma colaborativa e autor de cinco best sellers, é um dos principais nomes brasileiros a unir moda, sustentabilidade e comportamento como pessoa e profissional.

FOTO: INSTAGRAM
A consciência depende diretamente da clareza e da comunicação. Como você enxerga as atuais dificuldades dos consumidores com as empresas quando o assunto é transparência?
 
É importante relembrarmos que não fomos ensinados a consumir moda como deveríamos. Não aprendemos a nos questionar qual a origem das coisas, como elas são feitas e para onde vão. Consequentemente, não aprendemos a escolher o que compramos de acordo com os impactos que as nossas escolhas causam no mundo.

Aprendemos a consumir a moda, especificamente, como uma forma de expressão orientada pelo desejo que muitas vezes é criado por diferentes motivações. Não fomos ensinados ou incentivados a consumir por necessidade, mas sim por frugalidade, e isso impacta a relação que temos com todas as coisas à nossa volta, não somente a moda. 
 
Desde os alimentos que consumimos sem o conhecimento da sua procedência até os telefones que usamos, com uma quantidade altíssima de minerais que também têm um papel significante na devastação dos biomas.

Não fomos acostumados a pensar no que consumimos de forma crítica, então quando falamos sobre transparência por parte das marcas, entramos em um território perigoso: a falta de conhecimento de quem consome. Uma marca pode se comprometer a reduzir o seu percentual de emissão de carbono em até 10%, o que pode soar muito ou pouco, dependendo da realidade e consciência de quem recebe essa informação. Mas isso não significa que as marcas não devem compartilhar os seus feitos e metas, muito pelo contrário, elas têm um papel fundamental na educação e formação de consumidores mais responsáveis e conscientes. Gosto de dizer que essa é uma trajetória colaborativa, onde as pessoas precisam se questionar cada vez mais e, em contrapartida, as marcas compartilharem de forma cada vez mais acessível os porquês além dos números.

Falar sobre ações sustentáveis dentro de um mercado que está pautado na circularidade pode parecer redundante, mas novas vertentes surgem no mercado, como a reparabilidade, muito comentada na última semana de moda de Copenhagen. Você acredita que inovações têxteis voltadas para reparos, visando uma extensão ainda maior do ciclo de vida dos produtos para além da compra e venda de itens usados, tenha uma boa aceitação dos consumidores brasileiros, sendo uma forte tendência de se enxergar a moda para além do consumo direto de um produto?

Esse não é um diálogo redundante para mercados pautados em circularidade porque a sustentabilidade vai muito além do produto em si. É inquestionável que o produto mais sustentável é aquele que já existe, mas vários outros fatores precisam ser pensados para além da materialidade, como processos operacionais, armazenamento, embalagens, logística e manutenção das peças, como é o caso da curadoria.

Quando falamos sobre reparos e beneficiamentos, é necessário e é uma evolução. Como esse produto que já existe pode ter uma vida ainda mais longa e como pode se tornar uma outra coisa? Por mais que os negócios sejam circulares, grande parte dos produtos não foram feitos para ser. Então o que fazemos quando essas coisas acabam? Para onde essas coisas vão? Pensar nisso e se responsabilizar por isso é algo importante e um passo à frente de negócios circulares.

O mercado de luxo carrega uma grande responsabilidade em ser pioneiro não só nas tendências de design, mas também em todas as iniciativas que vão além da roupa. O grupo LVMH declarou o compromisso de aumentar para 40% a participação das energias renováveis no seu mix energético, reduzir o consumo de energia das suas lojas em 31% e ter 74% das peles provenientes de curtumes certificados. Como você vê os posicionamentos e envolvimentos socioambientais das marcas de luxo atualmente e, consequentemente, o desejo que elas provocam em uma geração para além de uma it bag?

É maravilhoso que o mercado de luxo, por ser referência para tantas outras marca, assuma essa responsabilidade em ditar tendências para além do design, ainda mais por ser um mercado que fala diretamente com um público que tem a opção de escolha, o que torna todas as mudanças cada vez mais próximas da realidade além de incentivar os investimentos e  inovações nos processos que podem ser escalados para toda a indústria.


Pensando na rastreabilidade como um dos principais pilares do consumo consciente mas também entendendo ela como uma das maiores dificuldades do second hand, você como consumidor, ao desapegar de algum produto, estaria disposto a contar por quantas mãos ele já passou?

Apesar de desafiadora, a rastreabilidade é também instigante: quanto mais pudermos contar as histórias dos produtos, por onde eles passaram, quantas vidas eles tiveram, além de necessário e instrutivo, é lúdico e afetivo, o que traz um senso de pertencimento, história e ressignificação. 

Se a moda imita a vida e pensar no nosso futuro é viver o presente, quais mudanças urgentes você, como pesquisador, especialista e consumidor, olha para o mercado de segunda mão hoje e o que aspira para os negócios de moda nessa caminhada de descarbonização?

A nossa maior urgência é olhar para o que já existe e entender que vivemos em um planeta com muitas coisas prontas, que já causaram impactos ambientais e sociais, então quando descartamos algo, estamos descartando também a mão de obra, os recursos e as histórias por trás daquilo. Existem dados alarmantes sobre isso: já precisamos de 1,7 planetas para conseguirmos “dar conta” de tudo o que utilizamos e produzimos ao longo de um ano, e não existem 1,7 planetas disponíveis para nós, apenas um. O que eu sonho para o presente é que possamos ter como indivíduos e marcas, um olhar mais amoroso e responsável pela moda, dando uma nova vida às coisas.

 FONTE: VIVA O FIM, 2018

 

Os brechós, apesar de terem se reinventado nos últimos anos, desde o início, ainda que não intencionalmente, fazem parte da economia circular e oferecem uma nova maneira de enxergar o consumo, ainda que inicialmente tenha sido um reflexo econômico e social. 

No Brasil, a primeira loja do segmento surgiu no Rio de Janeiro, na rua Riachuelo, século XIX, fundada por um comerciante chamado Belchior, surgindo assim, o nome brechó, com a qual a pronúncia portuguesa se assemelhava.

As diferentes referências nos inspiram com o fator principal da rastreabilidade dos produtos do mercado do second hand: as histórias que cada produto nos conta, reflexão que nos inspira a sermos livres para escolhermos qual história nós queremos contar, como marcas e pessoas, daqui pra frente.

 

05/10/2023 SUSTENTABILIDADE | RENATA FERNANDES